quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A SAGA NORDESTINA




‘Prepare o seu coração para as coisas que eu vou contar. 
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão... 
E posso não lhe agradar...’ 

Eu relutei em escrever algo assim... ‘a-velha-saga-da-pobre-nordestina’. Tão roteiro rede Globo, tão exaustivamente clichê. Mas te falar que não há muito como fugir do óbvio. Nordestino ‘forte, batalhador, sofredor’ é um pleonasmo redundantemente delicioso de constatar, perdoe-me o resto do país.

São Paulo sempre foi uma promessa distante. Um mundo de Oz dentro da minha Kansas, Maceió. Eu queria ir desde sempre, mas a vida impedia. De lá e cá, com todos aqueles obstáculos que faz vc pensar se ainda deve. 

Entrei na faculdade de jornalismo achando que ia mudar o mundo e essas coisas tolas que vc acha aos 20. E depois vc aprende que mudar o mundo fica em segundo plano, o importante é tirar boas notas e nem isso é garantia de nada. Antes mesmo da formatura, são os vagabundos que ocupam os melhores postos. Os malandros, os Zé Carioca das arenas do capitalismo selvagem. 

E eu nunca tive nada a ver com isso. É estranho nascer em um lugar e não se sentir parte dele. 

Daí a Paulicéia me recebeu de braços abertos e dentes cerrados. Morde e assopra. Eu estava com R$700 no bolso e um plano: Se arrumasse emprego, ficaria. Senão, voltaria. E assim começa a odisséia. Primeiro como vendedora em Osasco, a 1 hora da minha casa, puta viagem. Mas os paulistanos diziam que eu tava no lucro. Enfim, eu precisava pagar o aluguel. Saía antes do almoço, chegava em casa meia-noite. Quando chegava, ainda mandava currículo para as vagas de jornalismo, mesmo muito cansada. Foram longos meses até conseguir um emprego na minha área. 

E aí passei por tudo. De me perder na cidade grande sem ter dinheiro pra voltar pra casa e morrer de chorar no meio fio. De receber proposta para me prostituir. De não ter nada na geladeira dias inteiros. De gente me passando para trás.

Não era possível aquela cruz ser tão pesada assim. Porque eu podia e queria carregá-la, até virar mártir. Pensei em voltar pra casa um milhão de vezes, mas é difícil admitir uma derrota. Feito azia de covardia, como se vc engolisse o próprio vômito. Fui ficando azeda, endurecendo aos poucos. Transformando toda aquela ingenuidade de menina do interior em agressividade, em falsa polidez de defesa veterana. É assim que sobrevive na Terra da Garoa. 'Viver é melhor que sonhar', diria Belchior.

São Paulo foi como aquele pai severo que bate pra te educar e diz: "É pro teu bem". E vc aprende a andar sozinha, apanha pra crescer. E a verdade é que fui abençoada: São Paulo até hoje me oferece o inédito, a novidade dos neons, de todo aquele esplendor de cidade que não pára. A primeira vez que vi granizo. A primeira vez que peguei metrô. A primeira vez que comi açaí, fruta do conde, maracujá doce, melona. A primeira vez que chorei no meio fio. A primeira vez que vi negociação de putas na porta da minha casa. A primeira vez que puxei erva. O primeiro time do coração. A primeira vez que fui a um motel. A primeira vez em um Pub. A primeira vez andando de trem. A primeira vez que fazia algo pela primeira vez.

Aqui eu era a mulher que eu sempre quis ser. São Paulo é a cidade das grandes conquistas, das grandes impossibilidades, dos grandes amores. Dos grandes nomes. Das grandes tristezas e incontáveis alegrias. 
É a Terra dos imigrantes. Do Japão, da Itália, do Nordeste. E, em que pese os casos de xenofobia, homofobia, conservadorismo, São Paulo é lindamente cosmopolita, universal, democrata. Traz no cerne a história sofrida de povos que estão longe de sua pátria. Conta uma época que os recebeu com terra e promessas. São Paulo é nossa terra-mãe, nossa doce Israel - a terra que jorra leite e mel.

Obrigada por tudo, Paulicéia!



‘Você me pergunta

Pela minha paixão

Digo que estou encantada

Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva
Do meu coração...


(Belchior – Como Nossos Pais)


‘Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei...’


(Geraldo Vandré - Disparada)